Relatório Incompleto Sobre os usos do Impossível
ISABEL BRISON
Penso
que não estarei errado se encaixar o trabalho que tens desenvolvido até aqui no
tema da ruína. As ruínas descritas pelos pintores da segunda metade do século
XVIII, ainda longe de uma intenção realista/documental, eram representações
ficcionais: paisagens elaboradas a partir da conjugação de apontamentos
dispersos, feitos directamente no local onde esses vestígios do passado se
encontravam. O Grand Tour estava muito na moda. Pergunto-te:
como é o teu processo de trabalho? Esse lado ficcional, ligado ao tema da ruína,
está consciente na tua forma de pensar e de construir as imagens?
O tema da ruína
interessa-me principalmente pelo que revela da nossa forma de construir sobre a
Natureza, de dar forma à matéria e tentar preservá-la, e do processo subsequente
de reclamação pela Natureza das nossas construções - o desgaste provocado nas
estruturas pela acção dos elementos. Não se trata de uma oposição entre o
natural e o construído mas de um movimento contínuo de dar forma aos produtos
da nossa acção e de ocorrências exteriores a nós. Este enformar também é
simbólico, na medida em que damos valor a algumas ruínas pelas evidências que
mostram do tempo passado, da sua habitação e de marcas de catástrofes naturais,
por exemplo.
Relativamente ao meu processo de trabalho, há de facto semelhanças
com o que descreves. De início não terá sido inteiramente consciente. Utilizei
métodos de composição tradicionais da Pintura, mas não especificamente da
representação de ruínas do século XVIII. Há um lado documental - os meus
apontamentos no local são fotográficos - mas essas fotos raramente são
mostradas sem manipulação. Isso acontece nesta exposição e, curiosamente, na
maioria das fotos figuram árvores e não edifícios.
Porquê
esse interesse em mostrar as fotos sem manipulação? O facto de existirem mais
árvores do que construções humanas nessas imagens é deliberado?
Ao olhar para o meu arquivo fotográfico reparei que tinha uma
série de imagens exemplares, que funcionariam melhor sozinhas do que inseridas
numa fotomontagem. Muitas são árvores que sofreram algum tipo de intervenção
humana ou que se relacionam de forma interessante com o ambiente construído que
as rodeia: nelas vê-se, de forma sintética, a dinâmica entre vegetação e
arquitectura que tenho explorado mais elaboradamente nas fotomontagens. É
difícil dizer até que ponto isso é deliberado, porque raramente fotografo com um
objectivo concreto em mente.
Então
podemos dizer que a fotomontagem foi a ferramenta que arranjaste para encontrar
a "imagem perfeita", o espaço ideal? (Um espaço que, não existindo fisicamente,
tem de ser (re)criado - porque, a exisitir, seria o modelo para um único
registo fotográfico.)
De certa forma sim, sendo que a "imagem perfeita",
neste caso, refere-se a uma forma aproximada de representar o que eu vejo ou
imagino quando olho para estes espaços, edifícios ou objectos. As duas
fotomontagens que mostro nesta exposição são das primeiras que fiz, de uma
série intitulada "Lisboas", que se centra muito nos quintais do
bairro de Alvalade. Essa zona tem um ambiente característico e eu procurei uma
forma de mostrar, ou dar a entender, mais do que aquilo que estava diante da
lente num dado momento. Procurei juntar várias coisas que para mim faziam
sentido, mas que nunca caberiam no mesmo enquadramento.
Comecei por conhecer o teu trabalho pelas fotografias. Mas
fui descobrindo que este não incide apenas na fotografia (ou nas suas novas
possibilidades digitais). Os teus interesses têm incluído também os fanzines, o
desenho, a intervenção em páginas de livros ou a construção de espaços
tridimensionais em cartão, para dar alguns exemplos. Como articulas esses
diferentes suportes?
As construções tridimensionais surgiram da
necessidade de intervir de forma efémera em espaços específicos. A primeira vez
que o fiz foi em 2009, numa instalação/performance que ficou documentada no
vídeo Paper Architecture,
uma colaboração minha com o Nuno [Rodrigues de Sousa]. Essa peça foi construída
no nosso atelier e nunca foi mostrada ao vivo - só existe em vídeo. Suponho que
estes trabalhos podem ser vistos como ensaios particularmente rápidos da
impermanência da arquitectura. É interessante que as características do cartão
favorecem a construção de estruturas de aspecto maciço e vagamente medieval, de
uma monumentalidade que não está, à primeira vista, presente no próprio
material.
Os fanzines funcionam maioritariamente como
catálogos informais de exposições ou conjuntos de trabalhos, incidindo muitas
vezes no processo de criação dos mesmos. Neste sentido, nunca são independentes
do resto do trabalho.
Quanto aos desenhos sobre páginas de livros, também são trabalhos
de montagem, mas de material proveniente de leituras e pesquisa teórica. Nestes
desenhos incorporo reproduções de livros, fotocópias de textos que usei para investigação
ou que, de alguma forma, são importantes para mim. Aqui, o processo de montagem
é uma forma de repensar os textos, sobrepondo-lhes outros textos ou imagens.
Talvez
se pudesse falar de um processo de simulação como metodologia que une os vários
suportes nos quais o teu trabalho se materializa: nas fotografias, na narração
de espaços impossíveis; nas construções, com a falsificação de construções
arquitectónicas; nas páginas de livros, quase profanando o documento original,
sobrepondo-lhe informação de outra parte. Aliás, penso que esta ideia de
profanação tendo sido importante para ti, ultimamente. A profanação funciona
mais como um método de trabalho ou como um tema com densidade histórica (como é,
por exemplo, o da ruína, por onde esta conversa começou)?
Essa ideia de profanação vem de um texto do Agamben: profanar
significa retirar algo da esfera do sagrado e devolvê-lo ao uso comum. A dada
altura, ele menciona o Museu como local para onde as coisas e as ideias vão
quando já não têm um papel decisivo no mundo. Uma espécie de reforma. O Museu
não é um edifício físico, mas uma dimensão à parte. Tudo pode caber lá. Eu
associei isso à petrificação da arte nas colecções: a preservação a qualquer
custo, mesmo de coisas feitas de pó ou chocolate, o valor dado aos originais, a
definição de formatos e edições no caso das obras reprodutíveis... É tudo um
bocado absurdo, principalmente porque não se repercute na nossa experiência das
peças. Essa é uma razão para fazer peças efémeras: são construídas, servem uma
função e no fim desaparecem. Ou podem ser reconstruídas, adaptadas a outros
propósitos. Por vezes também brinco com a “fetichização” dos restos: tenho um
conjunto de desenhos arqueológicos de fragmentos de cartão dos destroços das
minhas instalações. É mais uma faceta da minha atracção pelos processos de luta
contra a entropia.
É
curiosa, essa ideia do Museu como um repositório de "monos". Quando
falas no Museu como sendo um espaço físico onde se acumulam coisas e informação
por vezes desnecessárias e a sofrer um processo visível de transformarão
material, lembrei-me do conceito de nuvem, hoje em dia tão na moda. Nesta
era do virtual, parece-me que assistimos pela primeira vez na história a uma
espécie de mumificação dos materiais - já que os materiais digitais não sofrem
um processo de desgaste físico. Um ponto amarelo numa determinada imagem ou filme
guardado no Youtube irá ser, de certeza, exactamente o mesmo amarelo daqui a 50
anos, ainda que possa ser visto noutro tipo de ecrã. Não sofre um processo de
transformação material que condicione o modo como será recepcionado no futuro.
Esse amarelo será, para todo o sempre, um código de números processados por um
dispositivo. Com vês esta mudança? E, já agora, como pode a arte responder a
esta questão? (Já que uma obra de arte tem sido, ao longo dos séculos, um corpo
carregado com uma certa aura.)
O código que diz à máquina para nos mostrar um
ponto amarelo é sempre o mesmo: por exemplo, o código hexadecimal que
representa o amarelo-esverdeado do fundo destas fotomontagens é o #f4ff98. A
informação não muda, mas os suportes podem avariar-se e daqui a uns anos pode
deixar de haver máquinas que saibam interpretar esse código. Há muito debate
hoje em dia em torno da preservação de arte digital, precisamente por causa da
obsolescência dos suportes, mas isso não impede a existência de um mercado para
esse tipo de trabalhos.
Como é que a arte responde a esta questão? Há a resposta dos
artistas, que é trabalhar com tudo o que vem à mão, e há muita coisa interessante
a ser feita que há umas décadas não seria tecnicamente possível. Por outro lado,
há a resposta do mercado, que é arranjar maneira de transformar esses trabalhos
em bens de luxo, através de edições limitadas, por exemplo. Isso já foi feito
com a fotografia e outros tipos de arte que se pensariam não vendáveis. Por
isso, a arte digital não representa um grande desafio. O que eu acho mais
interessante é a facilidade de acesso a ferramentas e a meios de difusão que os
computadores e a internet nos trouxeram, o que resulta numa enorme quantidade
de produção não sancionada pelo meio das artes, por pessoas sem qualquer
formação artística ou ligação com este meio. Há uma vontade de produzir e
mostrar, há público, e há trabalhos com muita qualidade.
Entrevista realizada em Junho de 2013 por Martinho Costa, artista plástico e responsável pela série de exposiçõesConfiguração, no next room.
Entrevista realizada em Junho de 2013 por Martinho Costa, artista plástico e responsável pela série de exposiçõesConfiguração, no next room.
Isabel Brison Lisboa (1980).
Vive e trabalha em Lisboa.
Estudou Artes Plásticas/Escultura na F.B.A.U.L. e é mestre em Ciências da Comunicação/ Comunicação e Artes pela F.C.S.H.U.N.L.
Expõe regularmente desde meados da década de 2000. Exposições individuais recentes incluem: Objecto Encontrado, Residências COOP, Lisboa (2013); O Futuro da Vida Urbana em Ruínas, Carlos Carvalho Arte Contemporânea, Lisboa (2012); Hechos Recientes en la Historia de las Ciudades, Galería Indecor, Lerida (2010).
Colabora ocasionalmente com Nuno Rodrigues de Sousa, tendo organizado com ele os projectos Daqui não se vê bem (2011) e Paper Architecture (2009).
Das suas exposições colectivas destacam-se: In Other Words, comissariada por Rowan Lear, Fringe Arts Bath, Bath. (2013); Opções e Futuros #5, Aquisições da Fundação PLMJ (2010); Em Diferentes Escalas, Espaço Avenida,Lisboa (2008).
Está representada na colecção da fundação P.L.M.J., colecção BESart e na Fundación Coca-Cola Juan Manuel Sáinz de Vicuña.
http://isabelbrison.blogspot.pt/